em Colunistas, Cristiane Dantas

Eric Hobsbawm afirmou que o século XIX só acabou de verdade após a Primeira Guerra Mundial, que aconteceu entre 1914 e 1918. Se a gente reparar bem, a visão do historiador inglês faz sentido inclusive na moda. Afinal, só no início da década de 1920 os vestidos subiram, o espartilho foi defenestrado e os cabelos não apenas perderam vários centímetros como passaram a ser exibidos soltos. Que o diga Coco Chanel, inventora do corte que eternizou seu nome – também – na coiffure. Finalmente a época da inocência ficara para trás, levando costumes que já em 1920 soavam a passado.

Nos anos 1800, usar os cabelos soltos só era permitido na intimidade do quarto, com o marido. Uma dama distinta, diante da família e das visitas, precisava estar sempre “penteada, calçada e apertada (leia-se com espartilho)”[1]. Mocinhas e mulheres saíam à rua durante o dia com as madeixas presas sob chapéu. Já em eventos noturnos, o penteado ganhava adornos elegantes feitos de flores e pedrarias.

Se manter um cabelo comprido hoje dá certo trabalho, imagina no século XIX, quando não havia água encanada e a oferta de cosméticos era praticamente inexistente? Jornais da época recomendavam tratamentos capilares à base de ovos, além de lavagem semanal com sabão se o couro cabeludo ficava muito engordurado. Em 1884, o Le Messager du Brésil (RJ) trazia anúncios de produtos, como o Tônico Oriental, para “augmentar e suavizar” as madeixas e o Óleo de Babosa, ideal no combate à queda e “cuidadosamente preparado na pharmácia da Rua Primeiro de Março n. 91”.

Ostentar cabeleiras extremamente longas era para quem podia. As damas da elite contavam com serviçais para ajudar a lavar, desembaraçar e pentear suas madeixas. Já as mulheres pobres que conseguiam cultivar fios minimante compridos os vendiam para a confecção de apliques. Em caso de morte também era comum que a família necessitada entregasse os cabelos da falecida em troca de umas moedas. Os apliques tinham bastante serventia, sobretudo nas décadas em que a moda pedia penteados volumosos e exuberantes, que incluíam coques, tranças e cachos. Para tal, os fios eram modelados com ferro quente, puxados, apertados e abafados pelas mechas postiças. Em sua edição de 30 de novembro de 1896, o periódico carioca A Estação criticava a tendência que maltratava as madeixas:

“Os cabellos são como o rosto, sofrem a affronta do tempo. Mas além da sua fadiga de viver, quantos sofrimentos teem de experimentar os diferentes preparados todos contrários a sua conservação! O ferro quente, os bigoudis que o secam, o tornam finos, quebradiços, as crispações e as ondulações que os despedaçam, os avermelham e os arrancam pela raiz. A compressão de cabelos por chinós muito apertados e chapéos muito pesados é desastrosa para sua vitalidade. É preciso arejar a cabelieira, pelo que devem ser condemnados os postiços, devendo a verdadeira elegância consistir em ter cabellos flexíveis e ligeiros”.

Além de designar a classe social, ter madeixas longas era considerado sinal de boa saúde. Isso porque a primeira ação dos médicos em caso de infestação de piolhos ou doença grave era tosar os fios, mesmo os das mulheres. Em tempos de medicina pouco avançada, essa medida era tomada porque se achava que os cabelos ‘roubavam’ a vitalidade da pessoa fragilizada por alguma infecção.

Falando em doença, a morte de crianças no século XIX era elevadíssima em todas as classes sociais. Para se ter uma ideia, em 1930, quando a mortalidade infantil brasileira já vinha diminuindo havia décadas, o índice era de 168%[2]. Esperando pelo pior, as famílias acreditavam que os pequenos mortos se tornavam anjos e, portanto, deveriam retornar ao céu do mesmo jeitinho que vieram à Terra. Resultado: ninguém cortava o cabelo dos filhos enquanto estes não atingissem certa idade. Por isso era comum haver meninos com longas madeixas, caso de Dom Pedro I, que aparece em uma pintura, aos dois aninhos, usando mechas douradas que lhe escorriam pelas costas.

Já que o imperador entrou na conversa, sua segunda esposa, Amelia de Leuchtenberg, tinha um bracelete confeccionado com a própria cabeleira trançada e arrematada por medalhão e detalhes em ouro. Já a Marquesa de Santos, amante de Pedro I enquanto casado com a imperatriz Leopoldina, ostentou certa vez um colar tecido com cabelo que despertou o ciúme do monarca: “… manda-me dizer (…) de quem é o cabelo que tens dentro do coração”[3], questionou o soberano em uma carta.

Quem não tinha condições financeiras de mandar fazer uma joia trocava mechas de cabelo com amigas ou parentes em sinal de afeto. Era comum colocar os fios em relicários e dar de presente a alguém íntimo. Assim como havia o costume de se retirar um pouco das madeixas de uma pessoa falecida e guardar como lembrança, conforme conta a pesquisadora Cláudia Witte no vídeo Uma História Cabeluda: os Cabelos do Século XIX, que tem perto de 80 mil visualizações no Youtube e inspirou este texto.

O legal de estudar História é que por meio do passado a gente compreende melhor o presente. Quando descobrimos que no século XIX os cabelos soltos carregavam alto grau de sensualidade, entendemos por que até hoje nossa cultura vê um apelo sedutor na cabeleira comprida. O hábito de trocar mechas de cabelo com pessoas queridas desapareceu, mas muitas mães deste milênio guardam o primeiro cachinho de seus bebês como lembrança. Por fim, algumas coisas nem mudam tanto assim. Em 1876, o jornal carioca O Mequetrefe trazia o seguinte anúncio: “… Sr Antonio Rodrigo Fontes, conhecido cabeleireiro desta côrte e que oferece aos calvos (…) uma tintura de sua invenção que é capaz de fazer nascer cabello na pele das palmas das mãos”. Pois atire o primeiro xampu quem nunca viu uma propaganda mirabolante na internet anunciando a solução definitiva para a calvície.

* Foi mantida a grafia original dos textos antigos.

[1] DEL PRIORE, Mary. Histórias da Gente Brasileira: volume 2 Império – Rio de Janeiro : LeYa, 2016. p. 287

[2] Evolução e perspectivas da mortalidade infantil no Brasil /IBGE, Departamento da População e Indicadores Sociais, – Rio de Janeiro : IBGE, 1999. p. 20

[3] REZZUTTI, Paulo. Titília e o Demonão. – São Paulo : LeYa, 2019. p. 72

Cristiane Dantas

Colunista

Cristiane Dantas

Jornalista formada pela Universidade Federal Fluminense e graduanda em História pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. No mercado de beleza, atuou como editora-chefe da revista Cabelos&Cia e editora contribuinte da HM.

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